Nem sempre o hábito de ler e o gosto por livros caminham juntos. Assim sendo, precisamos diferenciar o hábito da leitura do hábito de consumir livros. A leitura é um ato do intelecto e, se bem desenvolvida, pode tornar-se uma fruição estética e espiritual.
Volta e meia são publicadas pesquisas falando dos hábitos de leitura do brasileiro. São pesquisas que denunciam os baixos índices de alfabetismo, as dificuldades econômicas de acesso aos livros ou a pouca cultura livresca do país. Mas tais informações nem é preciso ser brasileiro para conhecer: elas não chegam a surpreender e evidenciam o que muitos já sabem há muito tempo.
De fato, o cidadão brasileiro carece de tempo, dinheiro e interesse para ler, e tais carências muito prejudicam a formação, manutenção e incremento do hábito de leitura no Brasil. Entre os jovens, geralmente, há pouca disposição para freqüentar livrarias e consumir livros, e a média de livros lidos mensalmente entre leitores jovens e adultos é bem pequena, se comparada à de outros países.
A estas informações (que soam alarmantes para muita gente), somem-se todas as decantadas pesquisas, previsões, sondagens e especulações sobre o futuro do livro e seu provável fim enquanto objeto de leitura, e então temos perspectivas ainda mais sombrias. Diante de tal cenário, não é à toa que a Câmara Brasileira do Livro está implantando uma política para a promoção do livro nacional, a fim de estimular o gosto de ler entre os jovens e, conseqüentemente, o consumo de livros.
Números tristes ou interessantes à parte, acho que se faz necessário dissociarmos o hábito da leitura do hábito de ler livros, começando por diferenciar uma coisa da outra. Leitura é algo muito mais abrangente do que ler livros, vai além do simples ato de fazer varredura visual de letras sobre folhas de papel.
A leitura, enquanto processo humano em constante evolução, é atitude complexa. Requer uma pré-disposição específica para a compreensão do mundo que nos cerca. Ultrapassa a mera apreensão do significado literal de palavras, estando ligada ao desenvolvimento de uma postura pensante ativa, humanística e integralizante. Em poucas palavras, ler é educar-se.
Para cada pessoa, um tipo de leitura
A leitura é um ato do intelecto e, se bem desenvolvida, pode transformar-se em fruição estética e espiritual. Quem tem o hábito freqüente de ler não faz diferença quanto ao objeto de leitura. Tanto faz se é livro, bula de remédio, panfleto entregue pela janela do carro nos semáforos urbanos, revista de variedades na sala de espera do consultório médico, apostila técnica, site na internet ou e-mails no palmtop.
Quem tem por hábito ler não se importa se chove ou faz sol, se está escuro ou claro, se está na biblioteca, no banheiro ou no metrô. Não se importa se o texto está em papel ou na tela, se o que lê é livro ou computador. Quem se interessa por ler lê tudo o que lhe cai nas mãos - e isto não é apenas "chavão demodé", mas fato facilmente observável. Quem gosta de ler lê tudo e lê sempre, em qualquer circunstância, desde que sinta necessidade e/ou prazer para tanto.
Já o amor pelos livros é outra história. Há, sem dúvida, os aficcionados do texto de papel, que estremecem de emoção ao sentir o cheiro de livro novo, recém-saído da gráfica. Ou a emoção paradoxal de cheiro de livro velho, curtido em sebos de qualidade, esperando o folhear leve, típico do slow food... Roçar os dedos por folhas de papel de boa qualidade, ouvindo o estalar de páginas virgens de um livro ainda não lido, é um prazer estético. Gostar de livros é experiência sensorial - tátil, visual, auditiva, olfativa. Amar livros é uma experiência sinestésica quase sexual, tão relacionada que está aos sentidos e ao prazer extraído através deles.
Também não podemos nos esquecer daqueles que adoram tanto os livros que quase chegam a enquadrá-los, colocando-os como objetos de puro adorno em estantes, colecionando-os a metro. São pessoas que se extasiam com os livros enquanto objetos estéticos, extáticos, materiais, fetichistas até, independentemente de seu teor. Mas que, no entanto, não se interessam pelo seu conteúdo potencialmente dinâmico.
Por outro lado, conheço pessoas que lêem vários livros técnicos e de cunho estritamente profissional, impressos no velho e bom papel, que facilmente engrossariam a estatística de leitores e, no entanto, não lêem mais nada além disso. Até se irritam ao ouvir falar em livros fora do expediente ou dos bancos escolares. Aí eu me pergunto: será que podemos considerar essas pessoas efetivamente "leitoras"? Será que elas gostam mesmo de ler, têm a leitura como modo de vida, no sentido mais amplo? Ou seriam apenas leitores funcionais (fazendo-se uma analogia com os analfabetos funcionais), que até lêem, mas não estão acostumados a ler, a não ser quando absolutamente necessário?
Ler é educar-se
Eu, sem dúvida, estou incluída no rol dos que amam os livros e o texto impresso. Sou uma colecionadora de papéis de mão cheia e também adoro navegar sem pressa pelas estantes de livros, sejam elas de livrarias da moda ou estantes empoeiradas de sebos repletos de relíquias ou esquecimentos. Reverencio tanto as novas edições (ainda mais se são caprichadas edições de arte) quanto os livros antigos, que armazenam ácaros de segredo e saudade.
Confirmando o clichê, leio tudo o que me cai na mão. Todas as paixões legíveis me divertem. Entretanto, para mim há claramente uma distinção entre o ler, enquanto modus vivendi, e o gostar de livros, enquanto fixação amorosa ou hobby. Amar livros não é necessariamente amar a leitura; mas amar a leitura é, conseqüentemente, amar (também) os livros.
Falo por experiência própria. Sou uma leitora compulsiva, às vezes obsessiva, e o que me interessa sempre é o texto - não importa como ele venha. O que eu quero é o conteúdo, a mensagem. O suporte, a forma como ele é formatado ou embalsamado, é apenas um detalhe, uma questão transitória.
Insisto como importante esta distinção entre o hábito da leitura e o consumo de livros pois vejo como absolutamente necessário nos adaptarmos aos novos tempos e às novas tecnologias. Ao longo de toda a história do homem, antes e depois da criação da escrita, é assim que temos evoluído socialmente - engendrando novas formas de leitura e aprendizado através das tecnologias que fabricamos. E é assim que, desde os primórdios da comunicação humana, acostumamo-nos a ler e interpretar sinais de fumaça, toques de tambores, cantos de guerra, máscaras, pinturas corporais, tatuagens, papiros, pergaminhos, códices feitos do couro de ovelhas jovens, iluminuras medievais até chegarmos aos livros impressos pós-Gutemberg.
Da mesma forma, devemos hoje estar preparados para ler tanto livros de bolso e edições de arte & luxo quanto histórias em quadrinhos, revistas, jornais, outdoors, neons, painéis eletrônicos urbanos, grafites, programações televisivas, canções e trilhas sonoras, música ambiente, filmes, anúncios publicitários, telas de máquinas de raios catódicos ou de cristal líquido, telefones celulares ou quaisquer outros dispositivos híbridos móveis de comunicação telemática, e tudo o mais que apresentar algum conteúdo informativo a ser transmitido, não importa em qual formato ou suporte tecnológico ele se mostre.
Enquanto não diferenciarmos o hábito da leitura (enquanto estilo e paradigma de vida) do hábito de ler livros de papel; enquanto continuarmos insistindo em considerar leitores só aqueles que lêem "x livros/ano", numa abordagem meramente formal e quantitativa, continuaremos a assistir ao definhamento das estatísticas oficiais que indicam quantos são os reais leitores existentes.
Pois, se continuarmos nos portando desta forma míope, continuaremos a tapar o sol com as mãos diante do fato de que o universo da leitura é muito mais complexo e abrangente do que o universo letrado dos livros, e não seremos nós mesmos leitores-intérpretes honestos da realidade.
Enquanto não encararmos o fato de que hoje, parodiando o escritor brasileiro Monteiro Lobato, uma nação se faz de homens e leitura, não importa qual seja a fonte da leitura, não cumpriremos a missão cidadã de orientar as novas gerações de leitores que estão surgindo, pois estaremos negando um futuro prescrito que já se faz presente.
Para saber mais
Câmara Brasileira do Livro: http://www.cbl.org.br
Associação Brasileira de Editores de Livros - ABRELIVROS: http://www.abrelivros.org.br/abrelivros/
Amigos do Livro: http://www.amigosdolivro.com.br
Sobre Monteiro Lobato: http://www1.uol.com.br/folha/almanaque/monteirolobato.htm
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