"Cada par copiava um mesmo trecho de prosa e vencia o aluno que apresentasse a letra mais bonita. O prêmio que se lhe dava era meter-lhe na mão a palmatória para que castigasse o vencido com uma dúzia de “bolos”. O professor chamou o meu nome e o nome do Doca. Aproximamo-nos da grande mesa. Eu tremia. Durante três minutos o velho examinou e comparou as duas escritas. Depois disse:
As duas letras são bem parecidas. Não se pode dizer que uma seja melhor do que a outra. Ambas são boas.
E lançou o julgamento:
“Empate”.
Respirei livremente.
O professor entregou-me a palmatória.
“Para que isso?”, perguntei.
“Para que há de ser?”, disse-me. Os dois não empataram?”. Você dá seis ‘bolos’ nele, e ele lhe dá seis ‘bolos’”.
Achei aquilo um disparate. Olhei o velho com surpresa.
“Que é que você está olhando?”, roncou ele asperamente.
A minha língua travou.
“Não posso compreender isso!, exclamei. Por que houve empate? Porque o Doca tem letra boa e eu tenho letra boa. Então quem tem letra boa apanha?”
João Ricardo ergueu-se da cadeira com um berro.
“Não quero novidades! Sempre e sempre foi assim. Atrevido! Quem é aqui o professor?
E entregou a palmatória ao Doca."
[Trecho de Cazuza, Viriato Corrêa]
Não é novidade para ninguém que no dia 15 de outubro, no Brasil, comemora-se, (aparentemente) o dia do professor.
Enfatizo o aparentemente porque como ex-membro da categoria, percebo que a cada dia que passa, os mestres desta nação têm muito pouco a comemorar, seja por conta de salários irrisórios que recebem por aulas dadas, ou por conta das inúmeras dificuldades que passam no exercício diário de sua profissão, onde, cada vez mais e com maior freqüência percebemos os mesmos tornando-se reféns de situações bizarras e absurdas que põem em risco tanto as suas reputações como profissionais quanto suas próprias vidas, quando geralmente têm de lidar com alunos problemáticos que são oriundos de núcleos familiares desestruturados que cada vez mais pipocam Brasil afora.
O fato é que o descaso das autoridades com a educação, setor que deveria ser tratado com alta prioridade neste país, está cada vez mais notório. Outrora uma profissão de status na sociedade, hoje em dia quase ninguém deseja tornar-se mais professor, o que não deixa de ser uma grande lástima. Penso que se um dia este país realmente deseje mostrar ao mundo que é desenvolvido, merecendo figurar entre os melhores do mundo, deve priorizar não só suas diretrizes educacionais, mas também valorizar ainda mais os profissionais que trabalham nas linhas de frente deste segmento, ou seja, os seus mestres.
Realmente são poucas as pessoas de hoje que (como nós um dia já idealizamos) abraçam com fervor a vontade e o desejo de exercer a profissão, possivelmente alimentando também no peito o secreto desejo de tornar o mundo um lugar melhor, seja proporcionando seus conhecimentos ou suas lições de vida a futuros cidadãos brasileiros ávidos por saber. Também são poucos os exemplos de profissionais em que professores aspirantes podem se espelhar, por conta deste caos instituído e enraizado no meio educacional, já que muitos mestres do agora não são nem a sombra de muitos que já existiram nos tempos de outrora, especialmente os de nossa época de estudantes, modelos irrepreensíveis com os quais convivemos em nossa vida escolar e que de certa forma nos influenciaram em nossas escolhas da vida. Isso sem mencionar aqueles que também conhecemos através de filmes como "Sociedade dos Poetas Mortos", canções como "To Sir With Love" (Lulu) e principalmente por meio dos livros que um dia lemos.
E aproveitando o gancho da data, como uma forma de homenagear os mestres do país, resolvi que hoje o trecho e a resenha inéditos que posto aqui no blog estão relacionados aos professores, em especial com alguns modelos que conheci ainda na infância, ao ler certo dia, um livro aparentemente simplório chamado Cazuza, de um autor que, na época, jamais tinha sequer ouvido falar antes: Viriato Correia.
Segundo sua biografia, o maranhense Viriato foi professor, jornalista, contista, romancista, teatrólogo, dramaturgo, autor de uma série de livros infanto-juvenis e membro da Academia Brasileira de Letras. Com seu único romance de destaque, “Cazuza”, o escritor faz uma crítica à escola do início do século, que ainda conservava o ranço do Império, ou seja, o modelo ultrapassado onde os alunos, em classe, apenas ouviam a voz do professor e nada opinavam, principalmente em estabelecimentos de ensino de pequenos vilarejos espalhados pelas cidades do interior. O docente, portanto, nesta época, constituía a única pessoa na sala com o poder absoluto da palavra. Só ele falava e as crianças apenas ouviam e copiavam suas lições, no mais completo silêncio. Se porventura respondessem de forma errada ou dessem um passo em falso, eles, os alunos, apanhavam, como o que acontece com o protagonista, que acaba ficando com mãos inchadas e sangrentas em uma das passagens mais dramáticas da obra.
Cazuza foi lançado no Brasil em 1938 e segundo Viriato, em prévia introdução ao texto, se trata de um romance autobiográfico de um estranho que o autor conhecia apenas de vista e do qual jamais soube o nome verdadeiro. Ressalta ainda que recebeu em mãos os originais do misterioso indivíduo em sua casa e depois disso nunca mais teve notícias do sujeito, que na vizinhança era conhecido apenas por seu apelido, Cazuza, uma alcunha tipicamente brasileira e bastante comum entre as crianças da época e do lugar onde ele vivia, a região Nordeste do Brasil.
Basicamente, o livro narra as doces e amargas experiências escolares do misterioso Cazuza, desde seus primeiros anos escolares, onde é alfabetizado por João Ricardo, o cruel e autoritário professor da escola do povoado onde o garoto nasceu passando depois pelos cuidados da maternal Dona Neném quando este se muda para a Vila. Por fim, a narrativa nos leva até os dias de Cazuza como aluno interno em um colégio da capital do Estado, São Luís, convivendo assim, nesta breve passagem de sua vida, com tipos humanos bastante distintos, entre professores e alunos, facilmente divididos entre pessoas cativantes e inesquecíveis e pessoas, infelizmente, intoleráveis e repugnantes.
Mas, mesmo não sendo o autor real do livro, que transborda de carisma e simplicidade, Viriato ajudou a criar um belo romance sobre o processo de crescimento físico e amadurecimento emocional de uma criança por meio de suas impressões pessoais no meio acadêmico, focando sempre em uma visão crítica sobre a pedagogia do antigamente, onde castigos físicos impostos aos estudantes e outras práticas abomináveis de disciplina rígidas eram adotadas por muitos estabelecimentos educacionais, especialmente os da década de 30, quando o Brasil se encaminhava para as políticas do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Foi nesse contexto político e ideológico que o livro Cazuza foi elaborado. Destinado às crianças, a obra traz, em um tom fortemente didático, questões que envolvem a moral e o enaltecimento de virtudes, que devem a todo custo ser seguidas, tais como a tolerância, a generosidade, a obediência, o respeito e a piedade, da mesma forma como o repúdio aos vícios, sendo os principais a mentira, a soberba, o autoritarismo, além, claro da exaltação máxima ao amor pela família, célula que precisa que naquela época precisava ser mantida, pois era em seu seio que se iniciava a formação do cidadão, posteriormente lapidado pela instituição escolar.
Recomendo Cazuza com louvor. Para quem é ou foi aluno ou para quem é ou deseja ser um professor. No caso dos pequenos, sua leitura é indispensável para a formação moral das crianças, pois traz questões que envolvem o cultivo das virtudes. E para os adultos, revela o papel da escola como um agente de formação e não de repressão do cidadão, mesmo mostrando os dois lados da moeda.
Observação: embora a grafia do nome do autor seja Corrêa na capa do livro, enfatizo que a forma correta é Correia, de acordo com o site da Academia Brasileira de Letras.